quinta-feira, 29 de maio de 2008

“A arte é tão importante que pode legitimar as mais horríveis ideologias”

O que faz um historiador de arte?
Um historiador de arte procura ler, interpretar e devolver memória a arquitectura, escultura, pintura, têxteis, gravura. Isto é, tenta que o objecto de arte que teve já um papel determinado pela História em determinado momento - medieval, moderno ou contemporâneo -, volte a ter o papel de encantamento, de testemunho. Que volte a ter um papel de trans-memória relativamente ao público que olha para ele.
Esse conceito de trans-memória é muito caro para si.
A obra de arte é o único objecto criado pelo homem que é vivo. Tem uma dinâmica dialéctica, trans-contextual, que é permanentemente renovada porque vai gerando permanentemente novos públicos.
Cada época tem um olhar sobre a mesma obra de arte?
A obra de arte escapa ao autor e ao público. Não basta ao historiador de arte saber quem fez e quando, quem é que a encomendou, porque isso explica apenas uma pequena parte do problema. O grande problema é: o que é que a obra é?
É sempre um exercício subjectivo.
Pode haver margens de erro, mas deve haver o mínimo. O historiador deve ter rigor para interrogar a obra com objectividade, cumprindo a metodologia que lhe cabe, trabalho de laboratório, estudo comparativo. Mas é claro que a obra, por regra, é inesgotável. Toda e qualquer obra de arte é inesgotável.
O historiador de arte é o intérprete ou o mediador entre o autor e o público.
Perfeitamente. É um intérprete crítico, com um papel activo, mas tem que ter primeiro que tudo uma grande humildade relativamente ao objecto. Interrogá-lo, descobri-lo, desvendá-lo. E parar quando a obra não revela mais…
Como é que se atinge essa percepção de que não há mais significados escondidos?
O erro é humano e normal. Tentamos errar o mínimo...
Nunca fica com a sensação de que há em determinada obra mais qualquer coisa escondida?
Sim e é normal que se volte a ver obras que já vimos, que tivemos que estudar noutros momentos, e dar-lhes um bocadinho mais. Nós evoluímos e a própria obra pode revelar aspectos que não eram intuíveis num primeiro momento.
Houve algum bem artístico que lhe tenha dado especial prazer estudar?
Hoje (dia 21 de Maio) vou falar aqui em Santarém da Capela Dourada, porque é um monumento da minha terra adoptiva que vejo desde pequenino, com o meu avô, com o meu pai. É uma magnífica capela barroca praticamente ignorada pelos escalabitanos, que tem estado fechada ao público. É uma obra que encaixa bem na pergunta que me fez. Foi desdobrando o encanto à medida que fui crescendo também com ela. A talha, a pintura, os rodapés, os retábulos barrocos, é uma unidade extraordinária do melhor barroco português que está ali encafuado naquele pequeno templinho ao lado da igreja do antigo hospital.
Grande parte da sua vida profissional é virada para o passado. Até que ponto isso determina a sua forma de analisar e viver o presente?
Gosto de definir o meu trabalho como de contemporaneidade. Porque toda a obra de arte é contemporânea. Pelo menos no momento em que olho para ela, em que a convoco para o meu tempo e tento entender os fascínios, os mecanismos que a fabricaram e que continuam a gerar empatia, ou não, relativamente a ela.
Agora também é verdade que tenho dedicado a minha vida a estudar o maneirismo, o renascimento, o barroco como períodos mais privilegiados. O proto-barroco é um período notável em Portugal e no antigo império português na arquitectura, na arte decorativa…
Qual dessas modalidades gosta mais de estudar?
Tenho estudado mais pintura, porque era o parente pobre. Em Portugal há milhares de quadros, frescos, alguns de muito boa qualidade e era a matéria mais urgente.
Todos os regimes marcantes têm habitualmente correntes estéticas associadas. A arte é uma forma de cimentar as ideologias?
Contrariando a ideia de que o património nasce inevitavelmente ligado a um momento de estabilidade ou de maior poderio económico, muito frequentemente nasce na mais rebelde vanguarda, na mais inóspita periferia. O fenómeno criativo tem outro tipo de regras. Depende do génio criativo mas depende fundamentalmente de uma conjuntura de rebelião, de comprometimento ideológico, da luta por ideais. A arte tem ideologia.
Isso aliás ficou bem vincado durante o regime nazi na Alemanha ou na extinta União Soviética.
Aí é diferente. Hoje está na moda denegrir o contributo do comunismo para o mundo. Estamos numa época neo-liberal em que se dá ideia que o comunismo não deu nada de bom. Convém distinguir e lembrar que há um contributo muito importante da esquerda a nível mundial que não é compaginável com o estalinismo. Confundimos tudo. E, nomeadamente no campo artístico, aquilo que foi criado naquele país feudal e que quebrou as grilhetas da tirania com o partido bolchevique, foi extraordinário.
Com o estalinismo as coisas mudam.
O estalinismo veio quebrar o fio condutor da criatividade e reprimir os criadores. E criou um regime sem grande qualidade, como também não tinha no campo hitleriano aquela caricatura de arte que em nome do combate à chamada arte degenerada foi criado para elogiar o regime fascista alemão. Evidentemente, a arte é tão importante que pode legitimar as mais horríveis ideologias.
Fado sim, touradas não
O centralismo cultural de Lisboa atrofia o país?
Numa altura em que está na moda atacar o Estado por tudo e por nada, creio que o Estado democrático tem um papel a cumprir nomeadamente na política cultural. Tem de haver um dirigismo competente e coerente que o Estado não cumpre. Lisboa é atacada não por ter um controlo a mais, mas por ter a menos. Defendo que deve haver mais Estado na cultura.
Em que sentido?
Deve haver uma melhor gestão dos monumentos que estão a cair, do património móvel que é vilipendiado, da política de restauro que não é feita. Enfim, são tantos problemas… Estamos a falar de bens públicos que não têm ideologia, que não têm carimbo, que nos comprometem em termos de futuro.
O abandono a que está votado o convento de São Francisco, em Santarém, é um exemplo dessa postura.
Houve uma altura em que confiámos muito, quando a câmara de José Miguel Noras levou a cabo uma tentativa de estudo integrado e um arranque do restauro que infelizmente não foi avante. Essa é uma das muitas nódoas que existem em Santarém a nível do património.
Que ligações tem com Santarém?
É a minha terra adoptiva. Aprendi a gostar muito dela com o meu avô, que era um ribatejano genuíno, e foi aqui que publiquei os meus trabalhos há mais de trinta anos. Vivi em Santarém bastante tempo.
A cidade tem potenciado o capital monumental que lhe é reconhecido?
Não. Houve uma candidatura falhada a património mundial e há trabalho válido feito por historiadores locais, arqueólogos e arquitectos. Mas nunca houve um programa de conjunto, nunca houve um inventário levado ao detalhe, nunca houve uma política de abertura desse património à comunidade. Há que trabalhar muito a nível pedagógico e do turismo cultural.
Chamar a Santarém capital do gótico é um exagero?
É! Mas é bonito. Para mais vindo de quem vem. O dr. Virgílio Correia nos anos 20 era o maior explicador medievalista português e a sua autoridade era inquestionável. Encontrou em Santarém três ou quatro monumentos relativamente intactos e uma quantidade de vestígios dos períodos românico e gótico que justificavam o título, não tanto pelo que ficou mas pelo que houve.
O seu pai esteve na génese do Politécnico de Santarém quando lutou pela criação da universidade do Ribatejo que nunca chegou a vingar. Santarém perdeu aí uma grande oportunidade de se afirmar no contexto nacional?
Na altura foi uma enorme polémica. Mas olhando para a realidade do país onde proliferam as universidades e as faculdades verificamos que muito provavelmente aquele projecto não era uma utopia. E a cidade hoje seria diferente.
É um entusiasta das tradições ribatejanas?
Gosto da etnografia da borda de água, da vida piscatória, é algo que me apaixona. Tal como o fado. A tourada não. É um espectáculo que desde pequeno me criava engulhos. Tem um lado bárbaro e violento e não mudei a minha opinião.


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