O movimento "art pour l'art", a partir do século XIX, teve o mérito de questionar a função social da arte e, ao voltar-se para uma avaliação de si mesma, refletir sobre as próprias ferramentas e sobre como explorá-las livremente, até a implosão. O custo foi alto, embora necessário, tendo rendido, de qualquer forma, excelentes frutos na modernidade.Porém nem o artista concretizou o sonho de desagrilhoar-se dos seus entornos (eu diria, aliás, que nunca a relação entre o artista e o sistema social e econômico foi tão tensa e intrincada como a partir do século XIX), nem a sociedade engoliu assim, com tanta facilidade ― e prazer ― o livre-arbítrio estético. Acho que eu posso afirmar sem risco que os tempos da pós-modernidade (embora conceituar um artista como pós-moderno seja o mesmo que chamar Você-Sabe-Quem de Lord Voldemort) mostram, sobretudo, uma preocupação em re-estabelecer o elo perdido entre objeto artístico e sujeito ― ok, entre arte e público.Chega de bancar o autista, dizia a turma dos anos 80. Gradualmente, queiram ou não os pessimistas, os saudosistas e até mesmo alguns críticos cujo olhar permanece vinculado à proposta romântico-modernista, os artistas voltaram a trocar o "u" pelo "r" e as mostras de arte estão, cada vez mais, comprometidas com idéias e conceitos antes considerados incompatíveis, tais como: entretenimento; contato físico (lembrando que antigamente se dizia: não se toca em obra de arte!); jogo; comunicação; e até mesmo ― oh! ― pedagogia da arte!Nesse exato instante, temos um belo exemplo bombando, aqui em Porto Alegre, no Santander Cultural: o FILE ― Feira Internacional de Arte Eletrônica. Net-art, instalações, filmes interativos, realidade virtual, vídeos, games e web-art, tudo misturado esperando não só pelo seu click no mouse, mas por sua entrega de corpo inteiro. Coragem: passe ridículo, dance, olhe, toque, ouça: afinal, você é um espectador contemporâneo, e não são apenas os seus olhos que estão literalmente em jogo, mas toda a sua capacidade cognitiva e motora. Divirta-se, mas preste atenção.Algo está acontecendo com aquilo que chamamos ― ou costumávamos chamar de arte. Esqueça as tradicionais definições, elas não cabem nesse caso. Mais do que uma exposição lúdica e, em alguns casos, reflexiva, a FILE quer nos propor a derrubada de fronteiras há muito destituídas de sentido. Por que essa assimetria entre função estética e função comunicativa? Por que priorizar estesia em detrimento da diversão? Por que, aliás, queimar fosfato tentando diferenciar o que é arte daquilo que não é? Essas questões não implicam de forma alguma propor o fim da arte como conceito, mas o seu deslocamento, numa reorganização inclusiva do saber estético. Gosto muito de uma frase de Gérard Genette ― teórico mais conhecido pela tribo literária, mas que tem um livrinho fantástico chamado A Obra de Arte: Imanência e Transcendência ― onde ele afirma que definir um objeto como obra de arte não passa de uma convenção útil, quando desejamos situar esse objeto em seu contexto sócio-cultural e econômico; contudo, essa definição é, não só hipotética, mas provisória, requerendo uma previsão de intencionalidade ― é preciso que esse artefato tenha sua função estética reconhecida tanto por quem o produz, como para quem o percebe. Esse raciocínio fica bastante claro para mim toda vez que penso em Duchamp como um exemplo de manipulação desses conceitos. Porém, deixemos Duchamp em paz, nesse momento. Na FILE, tudo pode ser, alguma coisa deve ser, ou nada daquilo é ― arte. Depende muito da intenção autoral de tal objeto (se ele foi concebido para exercer essa função), mas também dependerá do modo como ela será veiculada ou compreendida ― o fato de ela estar inserida num espaço institucional concebido para expor obras de arte faz muita diferença. Ou não faz?E se a Feira tivesse ocupado o estacionamento de um shopping center, tal como fazem as feiras de design, ou de informática? E se você pudesse acessar cada trabalho (como é o caso de alguns) pela internet? Será que isso mudaria alguma coisa para você, meu caro sujeito interagente? Será que isso mudaria a função ― ou o caráter ontológico ― do objeto artístico? Hans Belting e Arthur Danto, não por nada, ao discorrerem sobre o fim da história da arte, querem dizer do fim de um determinado approach do objeto auto-reflexivo estético, cuja validade encontra-se com os dias contados, se é que já não venceu.Porém, a meu ver, não se trata somente de um modo de aproximação desse objeto; tudo indica (sintoma e diagnóstico tão provisórios quanto quaisquer outros, não esqueçam) que as fronteiras entre linguagens estéticas e suas aplicações, sejam elas puramente poéticas, utilitárias, educativas ou lúdicas, por enquanto e para o pensamento contemporâneo, estejam caminhando para uma espécie de pulverização, o que não quer dizer que tudo o que se faça ou se intencione produzir como arte, preencha de forma adequada ou bem-sucedida essa função. Por enquanto, ligue-se e verifique por si mesmo: pense, enquanto se diverte. E vice-versa.Nota do EditorTexto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no site Artistas Gaúchos.Paula MastrobertiPorto Alegre, 14/4/2008
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