domingo, 10 de agosto de 2008

O PINTOR QUE TEIMOU NA BIENAL DE CERVEIRA

Arte na rua. O pintor Jaime Isidoro criou em 1978 a Bienal de Arte de Cerveira. No conservador Alto Minho, foi o "choque com as mulheres nuas e comunistas". Trinta anos depois, Isidoro recorda os tempos de confrontação, em que o objectivo era levar a arte à rua. "Não queríamos saber de partidos, o que importava era a boa arte"

Mostra amadureceu com os escândalos

"Arranje lá uma exposição de arte moderna para Vila Nova de Cerveira." O desafio, lançado pelo então presidente da câmara ao pintor Jaime Isidoro (na foto), já lá vão 30 anos, está na origem daquela que muitos não hesitam em classificar como a mais importante bienal de arte portuguesa.

Se Cerveira é hoje conhecida como a "vila das artes", em muito se deve à perseverança de quem lutou contra o povo, literalmente revoltado com o que via acontecer na pacata localidade minhota.

Corria o ano de 1978 e o nu artístico, mais do que chocar, era moralmente proibido. "Fizemos coisas que para muitos foi um choque. Uma artista francesa, na sua performance surpresa, apareceu nua num jardim a comer flores. Um escândalo!", recordou Jaime Isidoro, à conversa com o DN. "Ou a Jacinta Candeias, que nesse mesmo ano mostrou os seios, com o resto do corpo coberto por um pano."

Ainda nesta primeira edição, não faltaram as polémicas: "Numa das performances, a GNR entrou pelo pavilhão e acabou com tudo. Era um artista que representava S. Sebastião, mas que estava nu. As pessoas gritavam: 'É um homem nu' e não percebiam que aquilo era arte", conta, num tom de desconforto.

Apesar das dificuldades para implementar a bienal, que surgiu num misto de encontro internacional de artistas, Jaime Isidoro teimou em fazer afronta ao quotidiano da terra, agarrando o desafio antes lançado pelo seu amigo, e autarca de Cerveira, Lemos Costa. "Estava sempre a dizer-lhe que os presidentes de câmara só pensavam em caminhos para as quintas dos amigos e que ia esperar para ver como é que ele agia. Acabou por me surpreender com o convite", recorda ainda o pintor, hoje com 84 anos.

Logo na primeira edição, a bienal reuniu 400 obras de artistas nacionais e internacionais, num pavilhão gimnodesportivo, e logo se afirmou como a maior exposição a que se podia assistir fora dos grandes centros, como Porto ou Lisboa. Ainda hoje assim é. "Mas foi muito difícil, sobretudo para gerir as críticas locais. Para uns era uma festa de arte de comunistas, outros entendiam a bienal como um espaço de escândalos."

A oposição era tal que durante muitos anos houve quem criticasse o "grupo de parasitas que vivia à custa da câmara". Depois de tamanhas críticas, a segunda edição só foi possível realizar com a imposição de algumas limitações, a começar logo pelo fim de encontros internacionais. "Mas foi tudo feito quase da mesma forma. Só não queríamos era saber de partidos, o que importava era a boa arte. E isso, com ou sem polémica, conseguimos", sustenta.

Durante doze anos, Jaime Isidoro organizou a Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira. Volvidos 30 anos e mais de 500 mil visitantes, afirma que o conceito de levar a arte aos espaços mais recônditos ainda hoje se mantém válido. "Pretendia--se, e isso está correcto à vista de qualquer um, levar a arte à rua, em comunicação com a população. Mas claro que há muitos anos isso levou à confrontação. Hoje já não é assim." Até ao ano passado, a organização da bienal passou para as mãos de Henrique Silva, também ele ligado ao certame desde o início, e que assumiu um papel de amadurecimento do maior evento artístico do Minho.

"O esforço e a dignidade que levaram esses criadores e artistas a manter vivo o espírito duma bienal como a de Cerveira não se deve só aos seus organizadores, meros peões, mas sobretudo à conivência dos que ainda sabem maravilhar-se perante a linguagem da cor e do desenho", afirma Henrique Silva.

Actualmente radicado no Valadares, Vila Nova de Gaia, Jaime Isidoro continua ligado a Vila Nova de Cerveira, um pequeno concelho de nove mil habitantes, e às raízes de uma bienal que, mais do que ajudar a lançar, conseguiu consolidar. Quanto à pintura, não há dúvidas: continua a ser o seu gosto. "Vim agora de Cerveira, onde passei quatro meses no Atelier Livre, onde comia e pintava. É um local criado pela câmara e que responde àquela que era uma pretensão desde a primeira edição da bienal: ter uma Casa do Artista."
Fonte: DN online

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