segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Fernando Dores


Uma das coisas mais bonitas que a passagem de uma pessoa pelo miolo da cidade permite é não se estar a fazer conta com nada, entrar por uma porta aberta e, como por encanto, encontrar um acontecimento, uma personalidade, uma obra apreciável e o ensejo de falar de tudo isso.
A minha passagem pelo Chiado forneceu-me uma dessas oportunidades: uma exposição de Fernando Dôres, para ser mais preciso. Nota: não esquecer o chapelinho na letra “o” (que o meu computador se recusa a colocar) e bem assim o “p” na palavra “Metamorphoses”, pois é esse o título da mostra apresentada.
O conjunto de obras representa uma acumulação extraordinária de meticulosas atitudes.
Cada trabalho denuncia esse imenso vagar do espírito que permite, em cada passo que conduz à sua produção, concentrar totalidades diversas em que cada parte é destacável do todo sendo, não obstante, parte inalienável da síntese final.
Isto é: o observador pode congeminar a marcha dos gestos do artista criador; decifrar apetitosamente como tudo pode ter-se passado, encontrando em cada jornada um infinito prazer de descoberta e revelação.
Não obstante, e como já foi dito, o resultado produzido nem por isso é menos uma unidade coerente e expressiva.

Figura e fundo, uma dualidade sempre em evidência

A sucessão de episódios construtivos da obra tem outra característica muito peculiar: cada um se filia numa forma de pesquisa com características próprias; operações entre si muito diversas na manipulação dos materiais e na variedade das técnicas.
Casar tudo isso duma forma dinamicamente harmónica e sugestiva é o segredo do artista. A nós é deixado o ensejo de observar cada trabalho desde a sua génese até ao requinte do enquadramento de apresentação − mais que uma simples e substantiva moldura, quase sempre tratada como elemento adicional de surpresa.
Começo por aludir ao primeiro dos elementos presentes na “descoberta” de cada obra: a fortíssima categorização das ideias de “figura” e de “fundo”.
O céu, o chão, o horizonte ou a misteriosa distância a que se situa esse “fundo” é um exercício de subtilezas, baseado em grande número de trabalhos numa técnica da projecção de partículas de cores diversas.
Simples, dirá o observador incauto; rigoroso e expressivo digo eu, pela justeza e sobriedade das categorizações conseguidas.
O recorte e a colagem são outro dos episódios facilmente despistáveis do processo criativo, sendo apreciável a singeleza e o engenho colocado na pesquisa de cada elemento utilizado.
A decifração da origem de cada fragmento é pitorescamente poética, e revela a adopção de “achados” que equivalem ao embuste teatral de tornar complexo o que é simples e à simulação mágica de tornar simples o que é complexo.

Atravessar a ponte que nos conduz ao país das metamorfoses

Os gestos do desenho reforçados por uma ideia subtilíssima da pintura são o argumento principal de que dispõe Fernando Dôres na área da invenção (ou da revelação dos sonhos…).
Personagens que se desdobram noutras, fisiologias complexas, órgãos simbióticos que placidamente se enfrentam, todos oriundos de horizontes de estranheza que, contudo, não assustam nem amedrontam quem os visite.
Há qualquer coisa entre o pitoresco das fábulas e o absurdo dos mundos fantásticos nesta congeminação metamórfica de seres bem dispostos que convivem perfeitamente com a sua própria complexidade.
Metamorfoses, sim, seja a palavra grafada com éfe ou ph, entendendo-se a utilização desta última forma pela carga de expectativas que sugere.
“Metamorphoses”, sim, como ponte que atravessa para o país das visões problemáticas, oportunidade de fazermos as pazes com o universo das coisas estranhas e inquietantes que não conseguimos nomear.

A rádio paga por todos nós na divulgação da arte e da cultura

Ouvi esta manhã pela RDP 1, em noticiário nacional, que certa estrela de Hollywood vai inaugurar uma exposição de pintura de seu pai, em Lisboa. A notícia não era dada de modo avulso porque uma comentadora suplementar dava referências quanto à qualidade da pintura exposta, influências registadas, etc.
Os pais dos artistas de Hollywood têm todo o direito de vir fazer digressões a Lisboa, à Europa, a todo o mundo, enfim.
No entanto, as emissoras públicas de rádio (que somos obrigados a pagar junto com o recibo da luz eléctrica, quer as ouçamos ou não) e em geral a grande comunicação social sedeada na capital (que toda ela é paga por todos nós…) incluindo a Antena 2, deviam procurar dar-nos a ideia que entre a fronteira espanhola e o Oceano Atlântico há algo mais do que Lisboa, sua cultura, seus personagens e seus acontecimentos.
O que nem sempre acontece, com manifesto prejuízo para todo o país que somos, e não enobrece particularmente os próprios habitantes da enorme cidade, outrora chamada “de mármore e granito”.

Fernando Dôres, sem luxos mediáticos.

Publicada por Costa Brites em Sábado, Junho 09, 2007


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