Hoje é dia de ser bom.É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,de falar e de ouvir com mavioso tom,de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.É dia de pensar nos outros — coitadinhos — nos que padecem,de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.Comove tanta fraternidade universal.É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,como se de anjos fosse,numa toada doce,de violas e banjos,entoa gravemente um hino ao Criador.E mal se extinguem os clamores plangentes,a voz do locutoranuncia o melhor dos detergentes.De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético.(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimentoe compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprar.Mas a maior felicidade é a da gente pequena.Naquela véspera santa a sua comoção é tanta, tanta, tanta,que nem dorme serena.Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta.De manhãzinha,salta da cama,corre à cozinhamesmo em pijama. Ah!!!!!!!!!!Na branda maciezada matutina luzaguarda-o a surpresado Menino Jesus. Jesus o doce Jesus,o mesmo que nasceu na manjedoura,veio pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora.Que alegria reinou naquela casa em todo o santo dia!O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,fuzilava tudo com devastadoras rajadase obrigava as criadas a caírem no chão como se fossem mortas:Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.Já está!E fazia-as erguer para de novo matá-las.E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam que caíam crivados de balas.Dia de Confraternização Universal,Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,de Sonhos e Venturas.É dia de Natal.Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.Glória a Deus nas Alturas.António Gedeão
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