Arte é o que se chama de arte?
Postado por Luciano Trigo em 11 de Dezembro de 2007 às 19:33
No dia 19 de novembro passado publiquei na Folha de S.Paulo um artigo sobre arte contemporânea. Como o artigo já gerou três réplicas e uma tréplica, no próprio jornal, e dezenas de mensagens e outras manifestações (a favor e contra), na antiga versão deste blog, acho interessante trazer para o G1 o debate, que está longe de se encerrar.
Não vou transcrever os posts e artigos, mas destacar seus trechos mais relevantes. Tudo começou quando li uma matéria do repórter Ivan Claudio na revista Isto é, que tomava como pretexto duas exposições para levantar questões sobre os rumos da arte contemporânea. Na instalação Ainda viva, a artista Laura Vinci espalhou sete mil maçãs sobre uma mesa de mármore branco e o chão de cimento de uma galeria; já Quebra-molas, de Débora Bolsoni, reproduzia um redutor de velocidade de automóveis feito com uma tonelada de massa de paçoca de amendoim. As duas instalações tinham em comum a deliberada efemeridade e o recurso a comestíveis como matéria-prima.
A revista pediu a Ferreira Gullar, poeta e crítico de arte, que comentasse as obras. Aspas:
Essa produção vai morrer aí e nem tem mesmo como sobreviver. (…) Trata-se da arte da boa idéia, da Caninha 51. Esse tipo de trabalho não tem artesanato, não tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde, bacia, ovo frito. É uma falta de imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. Prefiro ficar em casa lendo Hamlet.
As artistas se justificaram falando da transitoriedade das coisas vivas, de tentativas de simbolização etc.
Eu escrevi:
“A arte contemporânea é um tema em que é difícil tornar produtivo qualquer debate, pois sempre se cai num Fla-Flu, isto é, vira uma questão de adesão incondicional de torcedor, mais que de reflexão crítica. Dando nome aos bois, o que temos hoje são, de um lado, críticos, como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna, que contestam a legitimidade e o valor de instalações como as de Laura e Débora, e de outro lado artistas que rejeitam em bloco este julgamento como reacionário e conservador. O problema não é saber quem está com a razão, mas constatar que desse atrito não sai nenhum desdobramento interessante. Por quê? Algumas hipóteses:
- Os artistas são auto-suficientes: ignoram solenemente crítica que os contesta.- Os críticos perderam a importância que tinham no processo de legitimação da produção artística.- Hoje, para um artista, importa muito mais se inserir numa rede de relações composta de curadores, marchands e galeristas do que obter reconhecimento crítico.
A noção de valor em artes plásticas é altamente subjetiva. Mas é também condicionada pelo contexto histórico-cultural e pelo modelo de relação entre economia e cultura que estiver prevalecendo. O sucesso de um artista hoje não depende somente, nem mesmo principalmente, do valor intrínseco do que ele produz, dos méritos plásticos ou estéticos de sua obra, mas sobretudo de sua capacidade de inserção num sistema complexo de seleção, que está cada vez mais distante da arte e cada vez mais próximo do mercado, do consumo e da moda - mesmo quando veste o surrado disfarce da transgressão, aliás outra palavra assimilada pelo mercado, pelo consumo e pela moda.
Tendo a simpatizar com as sete mil maçãs de Laura, o quebra-molas de paçoca de Débora me interessa menos. Mas isto é questão de gosto. O que parece preocupante é que esse tipo de produção - desligada da realidade, das questões contemporâneas, de compromissos, da História, do presente, em suma, da vida real – quase monopolize os espaços da arte hoje. É uma produção cujo principal defeito, para mim, é ser inofensiva. Pode até trazer fama, viagens e dinheiro a quem a faz, mas é disso que se trata?”
Ou seja, sem falar mal de ninguém, minha preocupação era analisar por que uma tendência dominante na arte contemporânea não reverbera e é recebida com indiferença fora de círculos fechados. Para minha surpresa, mesmo antes de sair no jornal este texto foi recebido a pedradas por um bocado de gente. O que de certa forma me dava razão: o debate sobre arte no Brasil era mesmo um diálogo de surdos.
No segundo capítulo da novela, já apoquentado pela leitura torta que estavam fazendo do meu texto, me atribuindo coisas que não disse e intenções que não tive, expliquei que só tinha levantado algumas hipóteses, sem em momento algum condenar, em bloco, a produção artística atual – o que seria uma idiotice. Escrevi:
“As duas instalações citadas (as maçãs e o quebra-molas de paçoca) pecam não pela controvérsia gratuita, ao contrário: pecam por serem obras inofensivas, fechadas em si mesmas, que não se articulam com nenhum processo exterior a elas próprias. As artistas têm obrigação de vincular suas obras à realidade? Não. Mas quando instalações desse tido se tornam a tendência dominante da arte, isto causa uma impressão de esgotamento e alienação. Nesta altura, aliás, as sete mil maçãs já devem ter apodrecido na galeria. E daí?
Todos os movimentos de vanguarda do século 20 que resistiram à prova do tempo - e foram vários - devem boa parte de seu êxito ao fato de terem mobilizado a sociedade em debates produtivos, porque estavam associados a transformações sociais, culturais, psicológicas e tecnológicas que tinham um impacto direto na vida das pessoas. Basta pensar na relação do futurismo com a guerra e com velocidade trazida pela máquina ao cotidiano das pessoas para constatar que o novo não era uma manifestação espontânea e gratuita de gênios individuais. Mesmo o surrealismo, com seu projeto de libertar a criação de qualquer controle racional, só foi possível num contexto de consolidação da idéia de inconsciente concebida por Freud; além disso, numa segunda etapa, o surrealismo foi associado por André Breton a um projeto político de esquerda, o que é uma contradição em termos, mas confirma o papel do contexto histórico na arte de cada época.
Quando Marcel Duchamp expôs um urinol ou desenhou um bigode na Monalisa, fez um gesto revolucionário, que rompia com as convenções e abria possibilidades infinitas para a arte. Mas, como todos os gestos fundadores, é irrepetível, porque o contexto já passou: desenhar um bigode na Monalisa hoje seria apenas ridículo. Abolidos os cânones, qualquer adolescente é capaz de transgressões parecidas.
O problema é que as fronteiras entre a criação artística e a empulhação pura e simples se tornam muito tênues em alguns momentos. A falência da crítica como fator relevante apenas agrava esse quadro, já que quem legitima o artista hoje não é mais o reconhecimento crítico, mas o sucesso em si: se faz sucesso, é bom. Nada mais capitalista. Mas talvez seja mesmo este o destino de todas as artes (a literatura, a música etc), isto é, enquadrar-se numa lógica de mercado ou morrer.
Mais grave que a repetição anódina de fórmulas que fizeram sentido na primeira metade do século passado é o esforço, igualmente ultrapassado, de épater a qualquer custo. Como é cada vez mais difícil chocar as pessoas, alguns artistas “perdem o senso de noção”, numa tentativa desesperada de ganhar projeção num mercado (pois é) cada vez mais competitivo. Duas obras recentes são bastante representativas desse fenômeno:
1) Numa exposição em Manágua, em agosto passado, o artista plástico costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc amarrou um cachorro num canto da galeria e o deixou lá sem comida, até morrer de fome, diante dos olhos perplexos dos visitantes. Habacuc se justificou: “O importante para mim era constatar a hipocrisia alheia. Um animal torna-se foco de atenção quando o ponho em um local onde pessoas esperam ver arte, mas não quando está no meio da rua morto de fome. Este cachorro está mais vivo do que nunca, porque continua dando o que falar”.
2) Em outubro, o artista plástico cipriota Stelarc convocou a imprensa para mostrar sua obra mais recente: ele implantou uma orelha no próprio braço. Stelarc utiliza o próprio corpo como plataforma para os seus trabalhos, que envolvem instrumentos médicos, próteses, biotecnologia, elementos de robótica e sistemas de realidade virtual. Não satisfeito, ele anunciou que quer implantar um microfone próximo à orelha, para captar o que estiver sendo “escutado”.
Será arte?”
Postado por Luciano Trigo em 11 de Dezembro de 2007 às 19:33
No dia 19 de novembro passado publiquei na Folha de S.Paulo um artigo sobre arte contemporânea. Como o artigo já gerou três réplicas e uma tréplica, no próprio jornal, e dezenas de mensagens e outras manifestações (a favor e contra), na antiga versão deste blog, acho interessante trazer para o G1 o debate, que está longe de se encerrar.
Não vou transcrever os posts e artigos, mas destacar seus trechos mais relevantes. Tudo começou quando li uma matéria do repórter Ivan Claudio na revista Isto é, que tomava como pretexto duas exposições para levantar questões sobre os rumos da arte contemporânea. Na instalação Ainda viva, a artista Laura Vinci espalhou sete mil maçãs sobre uma mesa de mármore branco e o chão de cimento de uma galeria; já Quebra-molas, de Débora Bolsoni, reproduzia um redutor de velocidade de automóveis feito com uma tonelada de massa de paçoca de amendoim. As duas instalações tinham em comum a deliberada efemeridade e o recurso a comestíveis como matéria-prima.
A revista pediu a Ferreira Gullar, poeta e crítico de arte, que comentasse as obras. Aspas:
Essa produção vai morrer aí e nem tem mesmo como sobreviver. (…) Trata-se da arte da boa idéia, da Caninha 51. Esse tipo de trabalho não tem artesanato, não tem técnica, não tem linguagem. Já se usou de tudo: balde, bacia, ovo frito. É uma falta de imaginação, uma grande bobagem que não me interessa. Prefiro ficar em casa lendo Hamlet.
As artistas se justificaram falando da transitoriedade das coisas vivas, de tentativas de simbolização etc.
Eu escrevi:
“A arte contemporânea é um tema em que é difícil tornar produtivo qualquer debate, pois sempre se cai num Fla-Flu, isto é, vira uma questão de adesão incondicional de torcedor, mais que de reflexão crítica. Dando nome aos bois, o que temos hoje são, de um lado, críticos, como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna, que contestam a legitimidade e o valor de instalações como as de Laura e Débora, e de outro lado artistas que rejeitam em bloco este julgamento como reacionário e conservador. O problema não é saber quem está com a razão, mas constatar que desse atrito não sai nenhum desdobramento interessante. Por quê? Algumas hipóteses:
- Os artistas são auto-suficientes: ignoram solenemente crítica que os contesta.- Os críticos perderam a importância que tinham no processo de legitimação da produção artística.- Hoje, para um artista, importa muito mais se inserir numa rede de relações composta de curadores, marchands e galeristas do que obter reconhecimento crítico.
A noção de valor em artes plásticas é altamente subjetiva. Mas é também condicionada pelo contexto histórico-cultural e pelo modelo de relação entre economia e cultura que estiver prevalecendo. O sucesso de um artista hoje não depende somente, nem mesmo principalmente, do valor intrínseco do que ele produz, dos méritos plásticos ou estéticos de sua obra, mas sobretudo de sua capacidade de inserção num sistema complexo de seleção, que está cada vez mais distante da arte e cada vez mais próximo do mercado, do consumo e da moda - mesmo quando veste o surrado disfarce da transgressão, aliás outra palavra assimilada pelo mercado, pelo consumo e pela moda.
Tendo a simpatizar com as sete mil maçãs de Laura, o quebra-molas de paçoca de Débora me interessa menos. Mas isto é questão de gosto. O que parece preocupante é que esse tipo de produção - desligada da realidade, das questões contemporâneas, de compromissos, da História, do presente, em suma, da vida real – quase monopolize os espaços da arte hoje. É uma produção cujo principal defeito, para mim, é ser inofensiva. Pode até trazer fama, viagens e dinheiro a quem a faz, mas é disso que se trata?”
Ou seja, sem falar mal de ninguém, minha preocupação era analisar por que uma tendência dominante na arte contemporânea não reverbera e é recebida com indiferença fora de círculos fechados. Para minha surpresa, mesmo antes de sair no jornal este texto foi recebido a pedradas por um bocado de gente. O que de certa forma me dava razão: o debate sobre arte no Brasil era mesmo um diálogo de surdos.
No segundo capítulo da novela, já apoquentado pela leitura torta que estavam fazendo do meu texto, me atribuindo coisas que não disse e intenções que não tive, expliquei que só tinha levantado algumas hipóteses, sem em momento algum condenar, em bloco, a produção artística atual – o que seria uma idiotice. Escrevi:
“As duas instalações citadas (as maçãs e o quebra-molas de paçoca) pecam não pela controvérsia gratuita, ao contrário: pecam por serem obras inofensivas, fechadas em si mesmas, que não se articulam com nenhum processo exterior a elas próprias. As artistas têm obrigação de vincular suas obras à realidade? Não. Mas quando instalações desse tido se tornam a tendência dominante da arte, isto causa uma impressão de esgotamento e alienação. Nesta altura, aliás, as sete mil maçãs já devem ter apodrecido na galeria. E daí?
Todos os movimentos de vanguarda do século 20 que resistiram à prova do tempo - e foram vários - devem boa parte de seu êxito ao fato de terem mobilizado a sociedade em debates produtivos, porque estavam associados a transformações sociais, culturais, psicológicas e tecnológicas que tinham um impacto direto na vida das pessoas. Basta pensar na relação do futurismo com a guerra e com velocidade trazida pela máquina ao cotidiano das pessoas para constatar que o novo não era uma manifestação espontânea e gratuita de gênios individuais. Mesmo o surrealismo, com seu projeto de libertar a criação de qualquer controle racional, só foi possível num contexto de consolidação da idéia de inconsciente concebida por Freud; além disso, numa segunda etapa, o surrealismo foi associado por André Breton a um projeto político de esquerda, o que é uma contradição em termos, mas confirma o papel do contexto histórico na arte de cada época.
Quando Marcel Duchamp expôs um urinol ou desenhou um bigode na Monalisa, fez um gesto revolucionário, que rompia com as convenções e abria possibilidades infinitas para a arte. Mas, como todos os gestos fundadores, é irrepetível, porque o contexto já passou: desenhar um bigode na Monalisa hoje seria apenas ridículo. Abolidos os cânones, qualquer adolescente é capaz de transgressões parecidas.
O problema é que as fronteiras entre a criação artística e a empulhação pura e simples se tornam muito tênues em alguns momentos. A falência da crítica como fator relevante apenas agrava esse quadro, já que quem legitima o artista hoje não é mais o reconhecimento crítico, mas o sucesso em si: se faz sucesso, é bom. Nada mais capitalista. Mas talvez seja mesmo este o destino de todas as artes (a literatura, a música etc), isto é, enquadrar-se numa lógica de mercado ou morrer.
Mais grave que a repetição anódina de fórmulas que fizeram sentido na primeira metade do século passado é o esforço, igualmente ultrapassado, de épater a qualquer custo. Como é cada vez mais difícil chocar as pessoas, alguns artistas “perdem o senso de noção”, numa tentativa desesperada de ganhar projeção num mercado (pois é) cada vez mais competitivo. Duas obras recentes são bastante representativas desse fenômeno:
1) Numa exposição em Manágua, em agosto passado, o artista plástico costa-riquenho Guillermo Vargas Habacuc amarrou um cachorro num canto da galeria e o deixou lá sem comida, até morrer de fome, diante dos olhos perplexos dos visitantes. Habacuc se justificou: “O importante para mim era constatar a hipocrisia alheia. Um animal torna-se foco de atenção quando o ponho em um local onde pessoas esperam ver arte, mas não quando está no meio da rua morto de fome. Este cachorro está mais vivo do que nunca, porque continua dando o que falar”.
2) Em outubro, o artista plástico cipriota Stelarc convocou a imprensa para mostrar sua obra mais recente: ele implantou uma orelha no próprio braço. Stelarc utiliza o próprio corpo como plataforma para os seus trabalhos, que envolvem instrumentos médicos, próteses, biotecnologia, elementos de robótica e sistemas de realidade virtual. Não satisfeito, ele anunciou que quer implantar um microfone próximo à orelha, para captar o que estiver sendo “escutado”.
Será arte?”
1 comentário:
As duas ações citadas não são arte. São ações de mentes doentes e não criativas.
[]'s
Alessandro Temperini
http://aletp.com
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